Início Indústria Aeronáutica

A história do Boeing 747-8 encalhado cujo vendedor promete até o que não pode

Existe um ditado popular, um tanto maledicente, que diz que “alguns carros são uma felicidade na hora da compra, e outra na hora da venda”, mas parece que isso também se aplica aos jatos – mesmo que sejam dos maiores do mundo.

HZ-HMS1

Esse parece ser o caso do Boeing 747-8i que aparece na foto acima, um legítimo Jumbo, pouco rodado, “único dono”, “de garagem” e “com todas revisões de fábrica” e em dia. Pode parecer o anúncio perfeito, um achado, mas acabou se tornando um “patinho feio” que não consegue ser vendido. O fato de ter tido um “único dono” é exatamente o principal motivo pelo qual este Jumbo está tendo dificuldades de ser repassado.

Para falar a verdade, apesar do jato estar pronto e parado há anos, o dono nunca chegou a recebê-lo porque faleceu antes da entrega. A dificuldade da revenda, no entanto, não está relacionado a nenhuma história rocambolesca, mas sim a quem era o dono, por que ele comprou, sua configuração interna e o que se pode fazer com esse 747-8 hoje.

O dono e sua história

O operador original seria ninguém menos do que Abdullah bin Abdulaziz Al Saud, rei da Árabia Saudita de 2005 até 2015, quando faleceu. Assim, o Jumbo em questão havia sido encomendado anos antes e voou em testes pela primeira vez em 2012. De número de série 40065, o grande jato recebeu a matrícula provisória N458BJ.

Um dos pontos mais importantes dessa história é saber que esse não era um “simples” Boeing 747-8 de passageiros, mas sim um Boeing Business Jet (BBJ). Esse tipo de avião sai de fábrica com uma configuração especial, com capacidade de passageiros reduzida e um interior completamente luxuoso. Além disso, o alcance da aeronave é estendido, com tanques de combustíveis extras no porão onde normalmente vão as bagagens dos passageiros.

Esta edição especial foi entregue pela Boeing em 2012, mas não foi direto para as mãos do rei, e sim para outros locais que se encarregariam da preparação do seu interior único, sendo o último local o Aeroporto Binacional de Basel na França/Suíça.

R.I.P King Abdullah bin Abdulaziz Al Saud.

O jato ainda estava lá quando Abdullah morreu e por lá ficou. A ideia era que o jato chegasse para substituir um raro 747-300 operado pelo reino saudita e o 747-400 de matrícula HZ-HM1, mas isso não aconteceu até hoje. Não se sabe por quê, mas o seu sucessor no trono, o meio-irmão Salman bin Abdulaziz Al Saud (foto acima), assumiu e não quis o Boeing 747, que ficou na Europa parado.

Sem perspectiva de uso pelo Reino Saudita, já faz um tempo que o Jumbo foi colocado à venda, mas sem muito sucesso.

Encalhado

Foram produzidos até hoje apenas oito 747-8 BBJ e o mercado para eles é muito restrito. Adaptá-los ao transporte de passageiros parece uma tarefa hercúlea e custosa, haja vista a grande quantidade de modificações que foram feitas para adaptar o jato ao transporte VIP. Resta então colocá-lo à venda como ele está e prometer qualquer coisa para passá-lo adiante.

HZ-HMS1 Saudi Arabian Government Boeing 747-8BBJ

O dono real da aeronave, segundo portal PlaneSpotters, é o Banco de Utah, um dos maiores operadores de leasing aeronáutico. No entanto, a venda está a cargo da CSDS Aircraft Sales & Leasing, uma empresa californiana especializada em compra, venda e aluguel de aviões VIP. A empresa anunciou o jato no site Controller, maior classificado online de aviões do mundo, sendo uma grande referência no preço de mercado de aviões usados.

O anúncio coloca o jato fabricado em 2012 “na prateleira” por US$95 milhões de dólares e disponível por financiamento com parcelas de US$488 mil mensais.

Acredite: é uma pechincha! O preço base do 747-8 de passageiros antes do fechamento da linha de montagem era de US$418 milhões, assim, aqui há um desconto de 77%.

Com pouco interesse das companhias aéreas e com um custo alto para transformar o jato de um BBJ para um 747-8i normal, restou apelar para o setor de cargas.

Não existem 747-8BCF por um motivo

Dizemos “apelar” porque a oferta que a empresa está fazendo é impraticável atualmente.

No anúncio diz que o avião “tem apenas 40 horas de voo e 18 pousos e poderá ser entregue com uma porta cargueira do 747-400BCF instalada. Pode ser convertido para um cargueiro completo após a instalação da porta”.

A porta cargueira em questão é aquela instalada em 747-400 de passageiros que são convertidos para carga, daí o acrônimo BCF (de Boeing Converted Freighter), ou cargueiro convertido pela Boeing.

O 747-400, assim como os modelos anteriores do Jumbo, foram produzidos em escala maior, e tiveram uma ótima aceitação no mercado de usados, principalmente como cargueiros. Por isso a própria Boeing começou a oferecer a conversão, instalando a porta de cargas traseira (a do nariz continua exclusiva dos cargueiros puros de fábrica), reforços nos pisos e outras modificações.

No entanto, tudo isso, além de ter um custo de equipamento e mão de obra, tem a certificação. Cada projeto de BCF gera um STC – Supplemental Type Certificate.

O STC é um certificado que atesta que o projeto de modificação suplementar foi feito e aprovado por uma autoridade aeronáutica. Ele é necessário para modificações médias e grandes, e tem o mesmo nível de exigência do certificado de aeronavegabilidade original do projeto, que demora anos para ser emitido.

Avião Jumbo Boeing 747-400F Saudi Arabian Cargo Saudia
747-400BCF da empresa aérea Saudi Arabian Cargo | Imagem: Alf van Beem / CC0, via Wikimedia Commons

Como dos 144 jatos 747-8 fabricados, apenas 47 não são cargueiros, sendo uma boa parte VIPs (que muita das vezes significa um único dono durante toda a vida útil), a Boeing não ofereceu a opção BCF para o jato até hoje, dado que o mercado em potencial é limitadíssimo.

Nada impede que outra empresa de engenharia aeronáutica ofereça a conversão, como é feito nos menores 737 e 757, e até mesmo no 747-400 pela israelense IAI que fez o 747-400BDSF – BeDek Special Freighter. Porém nenhuma empresa se interessou até agora, pelos mesmos motivos da Boeing, ou seja, a falta de clientes.

Some-se a isso que além da instalação da porta de cargas, seria necessário tirar todo o interior luxuoso do avião, que inclui chuveiros, e também retirar qualquer modificação extras de aumento de alcance, já que os aviões cargueiros são focados em capacidade de carga e não voos ultralongos.

Oferecer um Jumbo deste porte, com uma modificação não aprovada é algo nunca visto na aviação e que não parece se tornar uma realidade, mas pelo jeito se tornou a única esperança para que o Jumbo não seja desmontado no futuro. De qualquer forma, para voar como um cargueiro, haverá todo um processo longo e custoso de certificação.