A história do avião MD-11 que “pousou” em Campinas para nunca mais voar

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Era por volta de 18h50 da tarde de um sábado, dia 13 de outubro de 2012, quando o jato cargueiro McDonnell Douglas MD-11F de número de série 48434 aproximava-se do Aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas (SP), para fazer mais um de seus pousos, mas que se tornaria inesperadamente o último de sua história.

Coincidentemente, a aeronave que começou sua vida comercial no Brasil, com a matrícula PP-VOP na VARIG em novembro de 1991, daria adeus às operações comerciais no mesmo país após quase 21 anos.

Relembre a seguir como tudo aconteceu e o que descobriram os investigadores do CENIPA sobre o grave acidente, que interrompeu o funcionamento do aeroporto campineiro por quase dois dias completos até que equipamentos de remoção fossem providenciados e levados até Viracopos, causando um prejuízo estimado em cerca de R$ 10 milhões somente à Azul Linhas Aéreas, que já possuía grande malha no aeroporto após cerca de 4 anos desde a escolha do mesmo como seu hub inicial.

História do voo

No dia 13 de outubro de 2012, decolou do Aeroporto Internacional de Miami (KMIA), com destino ao Aeroporto de Viracopos (SBKP), a aeronave MD-11F operada pela empresa aérea americana Centurion Cargo, registrada sob a matrícual N988AR, com dois pilotos e um mecânico a bordo, em voo regular de transporte de carga. O voo transcorreu sem intercorrências até o momento do pouso em SBKP.

Na aproximação para pouso na pista 15, a tripulação realizou o procedimento de aproximação por instrumento IFR ILS Z. As condições meteorológicas eram visuais (VMC), com vento vindo de 150º com 19 nós (35 km/h) de velocidade. Quando a aeronave obteve autorização para pousar, a força do vento era de 20 nós (37 km/h), com rajadas de até 29 nós (53,7 km/h).

O copiloto era o piloto voando (PF – Pilot Flying), e o comandante era o piloto monitorando (PM – Pilot Monitoring) no momento do pouso. Quando a aeronave tocou na pista após o flare (arrendondamento, em que o piloto eleva o nariz para suavizar o pouso), o trem de pouso principal esquerdo colapsou, fazendo com que a aeronave derrapasse na pista por aproximadamente 800 metros antes de parar.

Houve danos substanciais no conjunto de trem de pouso principal esquerdo, na asa esquerda e no motor esquerdo. A aeronave parou dentro dos limites da pista. Nenhum dos três a bordo se feriu.

Experiência dos pilotos

O comandante era certificado como Piloto de Linha Aérea pela FAA (última emissão em 27 de junho de 2012), e era qualificado nas seguintes aeronaves: A320, B727, B747, B757, B767, DC-10 e MD-11. Possuía 12.900 horas totais de experiência de voo.

O copiloto era certificado como Piloto Comercial pela FAA (última emissão em 24 de agosto de 2010), e era qualificado nas seguintes aeronaves: C-172, PA-28, PA-44 e MD-11. Ele também tinha uma licença de engenheiro de voo para aeronaves B727 e DC-10. Possuía 5.198 horas totais de experiência de voo.

O comandante fazia parte da equipe de profissionais da Centurion Cargo desde março de 2003. O copiloto fazia parte da equipe de profissionais da Centurion Cargo desde julho de 2005.

Ambos os pilotos tinham certificados de qualificação técnica válidos para aeronaves MD-11. Eles tinham qualificação e experiência suficiente para o voo proposto pela operadora da aeronave.

Informações meteorológicas

Os relatórios meteorológicos de rotina do aeródromo (METAR) de SBKP no momento do acidente eram os seguintes:

SBKP – 132000Z 13020KT 9999 FEW025 SCT030 BKN090 19/14 Q1020
SBKP – 132100Z 14018KT 9999 FEW018 SCT030 BKN090 18/14 Q1020
SBKP – 132200Z 13018G31KT 9999 FEW018 SCT045 BKN090 18/13 Q1020

As condições climáticas prevalecentes eram visuais (VMC).

O vento informado pela torre de controle quando a aeronave estava na aproximação final era de 150 graus a 19 nós, e quando a aeronave recebeu autorização de pouso, o vento era de 140 graus a 20 nós, com rajadas de até 29 nós.

As informações meteorológicas transmitidas pelo Serviço Automático de Informação de Terminais (ATIS), e recebidas pela tripulação aproximadamente 15 minutos antes do pouso, indicavam o seguinte:

– Vento 150 graus, 20 nós, rajadas de até 29 nós;
– Visibilidade superior a 10 km;
– Cobertura de nuvens “broken”, com teto a 9.000 pés;
– QNH 1020;
– Temperatura 17 ºC.

Gravadores de dados do voo

A aeronave estava equipada com Gravador de Dados de Voo (Flight Data Recorder (FDR) e Gravador de Voz do Cockpit (Cockpit Voice Recorder – CVR). As informações contidas no FDR e CVR foram recuperadas e analisadas no Laboratório de Dados do CENIPA (LABDATA). O resultado da análise foi o seguinte:

– Os pilotos cumpriram as prescrições dos manuais da aeronave;

– A aeronave estava configurada adequadamente, mantendo a velocidade adequada ao seu peso, considerando a força do vento informada no momento da liberação da aeronave para o pouso pela torre de controle (20 nós, rajadas de até 29 nós);

– A aeronave manteve a velocidade de 165 nós (305 km/h) na aproximação final;

– Na aproximação, ao passar de 50 pés (15 metros) de altura, o PF reduziu as manetes de potência e iniciou o flare, com pitch (ângulo de elevação do nariz) de 5,5 graus;

– A aeronave estava estabilizada com 5,5 graus de pitch no momento do toque;

– Ao tocar a pista, a aeronave teve aproximadamente 1 grau de atitude de rolamento para a esquerda, a uma taxa de rolamento de 1 grau por segundo;

– A taxa de afundamento, ou razão de descida, da aeronave era de 10 pés por segundo (3 metros por segundo);

– A energia absorvida pelo trem de pouso principal esquerdo (Left MLG Energy) foi de 287.200 pés/libra (192.989 metros/kg);

– A energia absorvida pelo trem de pouso principal direito (Right MLG Energy) foi 360.300 pés/libras (242.110 metros/kg);

– A energia absorvida pelo trem de pouso principal central (Center MLG Energy) foi 360.300 pés/libras (242.110 metros/kg).

Quando a aeronave pousou na pista, o trem de pouso principal esquerdo colapsou.

A análise dos dados do FDR pelo NTSB dos Estados Unidos forneceu as mesmas informações já obtidas pelo LABDATA do CENIPA.

Testes e análises da estrutura do trem de pouso

A estrutura do trem de pouso principal esquerdo, seu cilindro e o conjunto de peças que o compõem foram levados ao Laboratório de Análise de Materiais do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA) para análise de falhas.

Após a análise, o relatório do DCTA descreveu que “a falha do trem de pouso se deveu a sobrecarga na estrutura do cilindro. A fratura começou na seção traseira do cilindro em um orifício de conexão (orifício do parafuso), que servia como ponto de concentração de tensão, e terminou na parte frontal do cilindro que se partiu em duas partes. As marcações em chevron na superfície da fratura apontam para a origem da falha e são típicas de sobrecarga dúctil”.

As mesmas peças foram então enviadas aos Laboratórios Boeing (Boeing-Long Beach Materials, Processing and Physics – MP&P), em Huntington Beach, Califórnia, EUA, para análises metalúrgicas. Os exames realizados foram observados por pesquisadores do CENIPA e especialistas do DCTA, além de pesquisadores da FAA e do NTSB.

O laudo técnico emitido pela Boeing em 8 de janeiro de 2015 destacou que, em um dos pontos de origem da falha, a análise havia identificado características semelhantes a um ponto de fratura aparentemente anterior, que provavelmente resultaria de sobrecarga anterior. De acordo com o relatório técnico, não foi possível afirmar que esse foi o motivo do colapso, mas a possibilidade deve ser considerada.

Os exames chegaram às seguintes conclusões:

– A falha do cilindro ocorreu devido à sobrecarga em sua estrutura; e

– Os “sinais de pré-fissuração” resultantes de uma condição de sobrecarga anterior podem ter servido como um ponto de concentração de tensão.

O relatório técnico da Boeing foi posteriormente avaliado pelos engenheiros do DCTA, que consideraram a possibilidade plausível. Segundo os profissionais do DCTA, a hipótese de uma pré-trinca servindo como concentrador de tensão era viável.

Dois Computadores de Controle de Voo (Flight Control Computers – FCCs) e dois Computadores de Dados do Ar (Air Data Computers – ADCs) foram enviados para análise nas instalações da fabricante Honeywell nos EUA, a pedido e supervisão do NTSB, mediante acordo com o CENIPA. Os testes foram realizados no Laboratório de Investigação de Segurança e Integridade do Produto em abril de 2013. Os resultados não trouxeram informações consideradas relevantes para a investigação.

Acidente anterior da aeronave

Em 20 de outubro de 2009, esta mesma aeronave (N988AR) operada pela Centurion Cargo operou o voo WE-431 de Miami (EUA) para Montevidéu (Uruguai) com cinco tripulantes a bordo.

A tripulação realizou um procedimento ILS IFR para a pista 24 e a aeronave fez um pouso duro (hard landing), que resultou na quebra do trem de pouso principal direito. A tripulação foi capaz de desocupar a pista principal e desligou os motores na pista de taxiamento.

O MD-11F acidentado em Montevidéu em 2009 – Imagem: CENIPA

Houve danos substanciais no trem de pouso principal direito e na asa direita. O laudo técnico emitido após a análise do cilindro direito do trem de pouso no laboratório da Boeing em Huntington Beach, Califórnia, afirmou que a falha do componente se deveu a sobrecarga. Deduziu-se que tal sobrecarga resultou do pouso duro.

A troca do trem de pouso direito ocorreu em Montevidéu e foi conduzida pela Varig Engenharia e Manutenção (VEM). A comissão de investigação do acidente de Viracopos não identificou nos registros do MD-11F a organização responsável pela investigação dos danos sofridos pela aeronave, a especificação dos serviços necessários à restauração da aeronavegabilidade (condição de voo), e a prestação de todos os serviços que possibilitaram a restauração da aeronavegabilidade da aeronave em Montevidéu.

Não foram pesquisados ​​nos registros da aeronave a ocorrência de outros eventos em que a estrutura do trem de pouso esquerdo pudesse ter sido comprometida, e a possibilidade de o dano resultante não ter sido reparado por meio dos serviços de reparo prestados, nem identificado em inspeções periódicas subsequentes da aeronave.

Conclusões

Após análises das características e recomendações operacionais do modelo MD-11, os investigadores concluíram que o pouso foi cumprido pelos pilotos dentro das limitações previstas, de forma que o procedimento não se configurou como um pouso duro.

Assim, foi considerado que o colapso da estrutura do trem de pouso pode ter sido resultado da possível trinca pré-existente em decorrência de esforços sofridos anteriormente.

Testemunho

Um suposto testemunho de outro piloto que estava no aeroporto e viu o acidente apresenta informações adicionais sobre a sequência de fatos.

Segundo comentário feito no portal Para Ser Piloto, pilotos de outra aeronave, que estava ao lado da cabeceira 15 de Viracopos aguardando para decolar, assistiram ao pouso e relataram que aconteceu um bounced landing, ou seja, uma situação em que o avião “pula” de volta ao ar após o toque na pista antes de completar o pouso.

Segundo o relato, o primeiro e o segundo toques teriam ocorrido com bastante força e colocado o MD-11 de volta ao ar, e somente na terceira volta à pista é que a aeronave se quebrou e se arrastou pela pista.

Entretanto, causa estranheza não haver nenhuma menção ao suposto bounced landing no relatório da investigação, embora mais pessoas nos bastidores da aviação também comentem sobre os supostos “pulos” da aeronave. Seria apenas uma informação errada, como uma “fake news”, que teria circulado e se espalhado?

A título de comparação, veja a seguir o vídeo bastante conhecido do acidente de um MD-11F da FedEx em Tóquio no ano de 2009, em que houve um bounced landing seguido, infelizmente, de uma quebra catastrófica da aeronave com destruição completa. Teria sido algo semelhante que ocorreu em Viracopos?

Após o acidente, a companhia aérea considerou que o custo de reparo e das taxas aeroportuárias para manter o jato em solo até o fim do processo eram inviáveis, e o MD-11F acabou desmontado e descartado.

Com informações do Relatório Final A-501/CENIPA/2015 do CENIPA

Murilo Basseto
Murilo Bassetohttp://aeroin.net
Formado em Engenharia Mecânica e com Pós-Graduação em Engenharia de Manutenção Aeronáutica, possui mais de 6 anos de experiência na área controle técnico de manutenção aeronáutica.

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