Perseguido por Saddam e casado com brasileira, piloto mais experiente do 747 se aposenta

A história do Comandante Mike é digna de filme. Não apenas é o piloto mais experiente do 747 no mundo, mas fugiu de uma ditadura para poder voar e se casou com uma brasileira.

Mike 747

No último dia 16, o voo da Virgin Atlantic entre Orlando, na Flórida, e Londres – Gatwick foi especial por marcar a despedida do Comandante Mike Abu-Nayla. Mas não apenas pela saída de serviço de um profissional com 46 anos de experiência, e sim porque a sua história é incrível e digna de um filme.

Tudo começou pra lá de Bagdá

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Os Boeings pilotados por Mike na Iraqi Airways: 727 e 747 © Jim Gordon

Tudo começou em 1955, em Bagdá, capital do Iraque. Mike nasceu filho de plantadores de laranja e cresceu ao lado de seus nove irmãos e quatro irmãs em uma boa condição de vida.

Quando garoto, ouvia histórias de um primo distante que era piloto da Força Aérea Iraquiana. Foi nessa época que Mike se encantou pela aviação militar, porém seus planos foram impedidos pelos seus pais, que viam um futuro obscuro ao país e temiam pela vida do filho num eventual conflito, que acabou mesmo ocorrendo.

Então, àquela altura, Mike decidiu seguir a carreira civil e acabou conseguindo uma vaga num programa de cadetes da empresa aérea estatal Iraqi Airways. Como parte do treinamento básico, foi enviado para a Escócia e, quando voltou, se tornou primeiro-oficial do trijato Boeing 727.

Não demorou muito e em 1978 foi promovido a co-piloto do jumbo 747-200, que se tornaria sua segunda casa pelas próximas quatro décadas. Curiosamente, isso quase não aconteceu. Durante o curso na Inglaterra para obter a licença de piloto de linha aérea, aconteceu o chamado expurgo do Ba’ath.

Perseguido por Saddam Hussein

Este expurgo aconteceu quando Saddam assumiu a presidência do Iraque, após o doente presidente al-Bakr ser forçado a renunciar. Logo após assumir o cargo, Saddam reuniu todos os seus concorrentes e oposicionistas do seu partido, o Ba’ath e, de uma só vez mandou executar 34 dirigentes e prendeu mais de 300.

Depois do expurgo, Saddam se tornou o líder supremo do país. Um irmão de Mike e cinco primos foram presos durante a perseguição à opositores. Mike nunca mais veria estes parentes e sua família pediu para que ele não voltasse, com medo de o prenderem também.

Porém, decidido a ver sua família e continuar sua carreira como piloto, Mike retornou ao Iraque. Acabou só fazendo um voo, e então o governo de Saddam tomou sua licença e o demitiu da Iraqi Airways, mandando ele para ser bilheteiro na companhia de trens estatal.

Mas Mike não estava satisfeito com a situação, queria voltar a voar de qualquer maneira. Com a sua família perseguida no Iraque, ele tentou por três vezes sem sucesso a permissão para sair do país, em direção ao Kuwait.

Na última tentativa ele foi sequestrado pela polícia secreta iraquiana, colocado no bagageiro de um carro algemado e questionado sobre suas intenções. Vendo que era um homem de experiência internacional, a polícia secreta de Saddam ofereceu a ele um emprego, em troca iriam arrumar tratamento médico para a sua mãe doente.

Mike negou a proposta e foi lhe dito que ele nunca mais poderia sair do país ou voar, e aí que ele decidiu fugir.

A rota de fuga

Um primo de Mike se propôs a lhe ajudar. Como trabalhava numa empresa de caminhões que levava contêineres de carga entre o Kuwait e o Iraque, ele escondeu Mike na boleia do veículo e o deixou no país vizinho, levando quase nada consigo.

Cinco meses depois de chegar no Kuwait, um amigo da época da Iraqi Airways foi até o governo local afirmando que ele era seu cunhado e conseguiu arrumar um visto provisório para Mike. Algum tempo depois, ajudou-o a conseguir um emprego na Kuwait Airways.

Feliz com o novo emprego, Mike foi mais uma vez ao Reino Unido para renovar sua licença do Jumbo, antes de começar a voar na Kuwait Airways. Mas a vida lhe insistia em pregar peças e a empresa nacional do Kuwait cancelou seu contrato quando ele ainda estava em treinamento, embora os motivos para isso nunca tenham sido esclarecidos.

Sem desistir, ele bateu em várias portas até conseguir um emprego na Air Lanka (hoje SriLankan Airlines), pouco depois sua experiência no 747 o ajudou a voltar para a aeronave que seria seu destino final e acabou entrando para o quadro de pilotos da escocesa Highland Express.

Dizem que piloto que não enfrentou uma falência não é piloto de linha aérea

 Mike voou no mesmo avião em duas empreas diferentes: à esquerda o 747-200 de matrícula G-HIHO na Highland Express, e depois o mesmo avião como G-VMIA na Virgin

O ano era 1987 e Mike finalmente voltou a voar com o Boeing 747, principalmente em rotas ligando a Escócia a Nova Jérsei. Tudo parecia finalmente estabilizado naquele momento, porém cinco meses depois do seu primeiro voo, a empresa acabou fechando as portas.

Sabe aquela frase “Deus escreve certo por linhas tortas” ? Isto se aplica ao caso de Mike. Isso porque a Highland foi fundada por Randolf Fields, que em 84 tinha fundado a Virgin Atlantic junto com Richard Branson. Fields e Branson se desentenderam logo após a Virgin ser criada, então Branson comprou a parte de Fields e ficou com o controle total da empresa. Guarde essa informação.

Novamente desempregado, Mike trabalhou por um tempo numa agência de recrutamento de pilotos, mas continuou batendo nas portas, inclusive várias vezes tentou um emprego na Virgin Atlantic e na Air Europe.

Quem tem amigos, vai longe

747 cockpit

Através de amigos da aviação, ele conseguiu conversar com pessoas-chave em ambas as empresas, que se interessaram por seu currículo e sua história. Ainda sem muito conhecimento do mercado aeronáutico britânico, Mike buscou um outro amigo, que já era aposentado da British Airways.

Ele recomendou tentar a vaga na Virgin, que apesar de menor e menos estabilizada que a Air Europe na época, estava crescendo. Mike pensou e colocou na ponta do lápis os custos que teria para ir ao aeroporto todos os dias, além de outros detalhes, e acabou aceitando a oferta da Virgin Atlantic.

O conselho do amigo nunca poderia ser mais valioso. Em 1991, a Air Europe fechou as portas, quando Mike já estava com dois anos voando na Virgin. Um ano depois, foi promovido a comandante, com 34 anos, o mais jovem da empresa.

Quem não gosta de um churrasco?

Mas uma última “peça” que a vida lhe pregaria foi igualmente incrível. Em 1992, um inspetor da CAA (agência de aviação civil local) lhe disse que a Virgin iria quebrar até o natal daquele ano, segundo as previsões da agência.

Nesse momento, Mike já era casado com Sílvia, uma brasileira que havia conhecido na Inglaterra. Com medo de novamente ficar sem emprego, Mike e a mulher juntaram suas economias e abriram uma lanchonete em Londres.

O negócio foi tão bem que decidiram por abrir a primeira churrascaria em território britânico, a Rodízio Rico. Ela existe até hoje e tem filiais em três cidades diferentes. Uma quarta unidade será aberta em Islington.

Mas as profecias da CAA se mostram incorretas e a Virgin não apenas não fechou as portas, mas cresceu e muito.

Mike foi um dos primeiros pilotos a voar o 747-400 da Virgin, em 1995, o primeiro avião que ele pilotaria sem o engenheiro de voo que, segundo ele “fazia falta à bordo porque eram bem humorados”.

De volta ao Iraque para libertar o seu país

747 Mike Iraque
Mike e Richard Branson no Iraque em 2003, junto as tropas britânicas da coalisão

Quando perguntado sobre o momento mais marcante da sua carreira, Mike fala que sem sombra de dúvida foi o dia 2 de maio de 2003.

O Iraque fora invadido meses antes por forças da coalização liderada pelos EUA e Reino Unido, e a Virgin foi contratada para levar militares e suprimentos do Kuwait para o Iraque. E Mike estava lá, sendo o comandante do voo, ao lado de Richard Branson, fundador da companhia, o qual conhecia a história de seu piloto mais batalhador.

Neste voo um procedimento especial de aproximação foi feito, com descida na espiral para evitar os radares de possíveis sistemas lançadores de mísseis. A jornada em sua terra natal deveria durar três dias, mas a guerra ainda estava começando e a operação acabou durando umas poucas horas.

Capítulo Final

Após muitas emoções (e não há espaço para contar todas aqui), Mike continuou a voar o Jumbo na Virgin até o dia 16 deste mês, quando encerrou sua carreira com 24.500 horas voadas apenas no Boeing 747.

Segundo a Virgin Atlantic, até onde se tem notícia ele é o piloto mais experiente na máquina, tendo voado o 747-200 e o 747-400.

Agora aposentado, irá ajudar a esposa a manter os restaurantes e visitar o Brasil no novo voo da Virgin para São Paulo, aproveitando seu merecido benefício-passagem na aposentadoria.

Mike e sua tripulação antes de assumir o último voo

Com toda certeza o comandante Mike merece o nosso reconhecimento após tantas dificuldades, perseguição de um governo tirano e incertezas na carreira. Melhor ainda é saber que boas pessoas surgiram durante essa história para lhe ajudar a escrever essa história incrível e inspiradora.

Carlos Martins
Carlos Martins
Fascinado por aviões desde 1999, se formou em Aeronáutica estudando na Cal State Long Beach e Western Michigan University. #GoBroncos #GoBeach #2A

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